Fernando Martins Zaupa. Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso do Sul.Especialista em Direito Constitucional .

domingo, setembro 04, 2011

Doutor, seja o que Deus e a lei mandar...lamento tudo isso... mas...eu vivi doutor, tô vivo..


Qual o seu veredicto?




Semana passada lá estava o senhor L., sentando-se em frente ao juiz, para prestar seu interrogatório.
Com seus quase oitenta anos, cabelos grisalhos, dentes ausentes, sulcos em sua pele negra, desses sinais típicos de anos ao sol, apoiou-se com as mãos a ostentar diversos calos, tomando o assento dos réus.
Estava a ser processado por ter disparado dois tiros e assassinado um jovem, em frente a sua residência.
No inquérito policial, informações truncadas sobre a dinâmica dos fatos, apenas com a conclusão de que o senhor L. e a vítima estiveram, momentos antes, em um mesmo bar.
Após o oferecimento da denúncia e ‘formada a acusação’, surgem nos autos as perícias, entre as quais o Laudo de Exame Necroscópico, a apontar que a vítima morrera em razão de um único tiro.
Ao lado de fora da porta de sua residência (um casebre de dois cômodos e um banheiro, só ‘ao reboco’ e sem muro ou portão), a perícia constatou um inscrição, feita com pedaço de tijolo de construção: “aqui vai morrer um velho safado”.
As testemunhas, ouvidas em juízo, foram unânimes em apontar que o senhor L. era um ancião trabalhador e querido naquele bairro que, até há poucos anos, ainda era considerado ‘zona rural’.
Algumas pessoas informaram que, após o dia de trabalho cuidando de sua ‘pequena lavoura’ existente em seu quintal (pois é...e tem gente que quer ‘encostar no INSS’ com desculpas variadas...), o senhor L. sempre passava no barzinho da localidade, para tomar sua ‘cervejinha sagrada’.
No dia dos fatos, eis que a jovem vítima, conhecida por se envolver em diversos problemas e ‘já ouvi que é metido com drogas’, segundo informaram inclusive o dono do bar (e olha que dono de bar geralmente não vê nada... ou ‘estava repondo o frezzer’ ou ‘estava no fundo do bar cortando um salame’!!), estava a mexer com o senhor L.
A cada momento que o senhor L. enchia seu copo com a cervejinha, eis que o rapaz tomava-lhe o copo, bebia um gole e derramava todo o resto no chão.
Após algumas tentativas de conversa e a turma do ‘deixa o velho em paz’ interferir, o senhor L. simplesmente preferiu retirar-se à sua casinha, já que a juventude estava complicada mesmo...
Os vizinhos, que não presenciaram os disparos, informaram somente que além dos estampidos de tiros, ouviram momentos antes gritos do que parecia voz de uma pessoa jovem, a bradar palavras de ameaça e morte ‘vai morrer velho’.
Os relatos foram até aqui...
Então, está ali, em minha frente, o senhor L., com os olhos esbranquiçados da catarata a se marejarem, passando a narrar o que ocorrera a partir de sua chegada em sua casa.
Informou, com uma dicção difícil, que o jovem chegou em sua casa falando que o mataria, já que ‘com ele era assim’ e ‘velho nenhuma daria as costas para ele’...
Balbuciou algumas palavras que não entendíamos e, após insistência para ser mais claro, relatou que o jovem chutava a porta e dizia que ia arrombar, mostrando algo na mão.
Pela fresta da janela, com a dificuldade da escuridão em identificar o que o rapaz segurava, ficou apavorado ao ver que seria morto, não tendo um mísero telefone para chamar ajuda.
Assim, pegou um ‘revorvi que desde pequeno ficava na casa’ e, para assustar o jovem, desferiu um tiro no chão de sua casa mesmo, próximo a um espaço que existe entre o piso e o início da porta da sala (verifiquei que o Laudo apontava realmente um disparo no interior, em dinâmica compatível com o que o ancião relatava).
O jovem, ao invés de sair, pareceu ficar mais enfurecido, lançando pedras que quebraram sua janela (o que, rapidamente, confirmei no Laudo, ao ver que constavam tais pedradas na janela e parte da parede da casa).
Ao final, em meio a pedradas em sua casa e gritos de ‘vai morrer’, o senhor L., com um suspiro a demonstrar que a vida estava ainda com ele apesar da tristeza da situação, disse, com as dificuldades de dicção que lhe tomavam:
“doutor, não sei o que falar...peguei e dei um único tiro na direção que achei que ele estava... sem ver... no meio do escuro.. Olha doutor, até hoje não sei se posso dizer que quis acertar ou não... Os gritos.. as pedradas.. eu sozinho... minha vida indo embora... eu que cheguei com meu finado pai como trabalhador de fazenda...que não conheci minha mãe...que trabalho hoje pra poder vender amanhã pros vizinhos e fazer um trocado pra viver... se quis matar? Doutor, seja o que Deus e a lei mandar...lamento tudo isso... mas...eu vivi doutor, tô vivo... (tentei reproduzir o que ele falou, já que a simplicidade de sua fala e dificuldades de dicção me são complexas para transcrever fielmente sua narrativa).
Após toda sua narrativa e algumas outras perguntas, pego o processo, abro no Laudo e lá está a foto da vítima, iluminada pela lanterna dos peritos, no meio de uma escuridão, caída com um pedaço de tijolo em uma das mãos...
Viro as folhas, e lá está a foto da inscrição ‘aqui vai morrer um velho safado’, mencionada pela perícia...
Abro o Laudo Necroscópico, eis que a vítima morreu de hemorragia, decorrente de perfuração de projétil de arma de fogo, o qual atingiu a artéria femural, na região da coxa, ou, em palavras mais simples, foi um tiro na perna!
Pois é...
Qual o seu veredicto?
O meu, deve estar nesse momento em uma casinha simples de ‘duas peças’ e paredes de reboco, provavelmente descansando, após um dia de labuta, ainda mais com o calor que faz por esses dias, nesse canto do país!

Um comentário:

  1. O meu "veredicto" atravessou o Atlântico, pousou junto de "um casebre de dois cômodos e um banheiro, só ao reboco e sem muro ou portão" e também descansou, fazendo companhia a quem trabalha "hoje pra poder vender amanhã pros vizinhos e fazer um trocado pra viver...".

    Um grande abraço

    Maria João Oliveira

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