Fernando Martins Zaupa. Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso do Sul.Especialista em Direito Constitucional .

sábado, novembro 26, 2011

E assim, após concluídas as investigações, não restando provada ocorrência de homicídio, a vida e estória dessa pessoa ficará registrada em algum lugar do vasto mistério que domina a existência humana...

Como anda sua vida?


Após despertar e abrir a persiana do quarto, os raios da manhã lastreiam pelo cômodo, mostrando a vida do dia por nascer.

A água do banho e o cheiro do café tornam os passos mais ágeis, Movimentando o espírito para seguir o roteiro de trânsito, árvores, música, pessoas, propagandas e chegada ao trabalho.

Enquanto o elevador não vem, lembrança das contas a pagar e compromissos da semana que ficaram para trás, atropelando os que estão por vir.

Alguns ‘bom dia’ acalorados, outros mecânicos e protocolares, e começam as pilhas de inquéritos policiais e processos.

Leitura de boletins de ocorrência, telefone a tocar, laudo de exame necroscópico, queda do sistema intranet, depoimentos de testemunhas, entrada do estagiário com dúvidas, anotações para a denúncia, retirada do livro da estante, digitação, nova queda da intranet, assinaturas digitais, entrada do estagiário com nova dúvida, ligação da procuradoria, chegada da pauta de audiência da tarde, relatório do delegado...

E a manhã segue seu ritmo, até que pego para ler o quarto inquérito do dia...

Inicia-se com uma portaria e boletim de ocorrência, os quais descrevem que, por meio de ligações telefônicas, terceiros estranharam a situação de um veículo tipo Kombi, sem placas, estar estacionado, já há algumas semanas, nos fundos de um terreno baldio.


Assim, os policiais dirigiram-se para lá e, conforme é possível também acompanhar pelas fotografias do Laudo Pericial do Local, depararam-se com um veículo em precário estado de conservação, com escritos quase apagados pelo tempo, estampados na lateral, escritos artesanalmente: “faço limpeza de jardins e terrenos”.

Por se tratar de uma Kombi do tipo fechada (sem janelas nas laterais e traseira), as primeiras fotos retratam a visão dos policiais ao chegarem na janela do motorista, onde puderam avistar apenas um banco e, ao lado, alguns instrumentos de jardinagens enferrujados.

Ao abrirem a porta dos fundos da Kombi, surge a visão de uma espécie de cômodo adaptado, deixando claro que alguém morava naquele veículo.

Havia uma pequena porção de roupa em um canto, um fogão com uma panela, algumas garrafas plásticas, uma bacia, laminados de marmitex, um espelho fixado na lateral...

No centro, um papelão estendido, sobre o qual estava o que parecia ser a silhueta de uma pessoa, embaixo de um cobertor...

Seguem-se as fotografias e relatos e, realmente há uma pessoa... morta... com o corpo encolhido, embaixo daquele cobertor roto, como a parecer que teria passado muito frio, já em avançado estado de putrefação e com algumas partes mumificadas...

A perícia aponta que não houve violência e o Laudo de Exame Necroscópico concluiu que a provável causa do óbito fora natural.

Os sistemas não conseguiram, por meio de análise do número do chassis, apontar de quem seria o veículo.

Nenhum dos moradores soube informar quem poderia ser aquela pessoa.

E assim, após concluídas as investigações, não restando provada ocorrência de homicídio, a vida e estória dessa pessoa ficará registrada em algum lugar do vasto mistério que domina a existência humana...

...pois para efeitos jurídicos, restou um arquivamento de inquérito policial de achado de cadáver.

E como anda a sua vida?

2 comentários:

  1. Fernando,
    Obrigada pela excelente reflexão!
    Tão triste quanto necessária!
    Enquanto isso, o baile segue calmamente.
    Lá, onde o modo inconsequente de gerir uma nação
    é concebido impensadamente!
    Eu não sei onde é, mas é lá.
    E como fica o sono dos justos que sabem se indignar?
    É a grande pergunta.
    E como anda a vida de cada um de nós em meio a tanto?
    Ou em meio a nada...já nem se sabe.
    Forte abraço,
    Eliana Crivellari

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  2. Um jovem operador da Justiça que dignifica o Brasil ,que nos provoca alento diante um Sistema Judiciário duvidoso e nada justo.
    Parabéns e sucesso em sua carreira - já profícua.
    Livia Abdala-Líbano

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