Fernando Martins Zaupa. Promotor de Justiça no Estado de Mato Grosso do Sul.Especialista em Direito Constitucional .

segunda-feira, julho 18, 2011

Abandonado por ‘ninguém sabe e ninguém viu’

"Agora ele é outra pessoa..."

  


Há passagens que marcam... e a do senhor F. é uma delas.

Atuando pela Promotoria de Defesa do Idoso em uma Comarca do interior de Mato Grosso do Sul, eis que atendo uma agente de saúde, a qual relata, de forma impressionada, as condições de abandono de um idoso.

Após seu relato e descrição tomados de indisfarçável carga emotiva (e quem é só razão quando se trata de vida humana?), saímos para o local.

Chegamos a um cortiço, onde, após um apanhado de quartinhos que mais pareciam baias (apesar de cavalos receberem tratamento e alimentação adequados), com água empoçada e musgos a evidenciarem a ausência de luz solar, está lá a portinha que dá acesso ao ‘quarto’ do senhor F.

Lá estava ele, deitado, aparentando desfalecimento, sobre um pedaço de colchão sujo, ao lado de uma travessa tomada de restos de comida e insetos.

No local, que mal cabia o naco de colchão, um amontoado de roupas maltrapilhas e um radinho de pilha.

O senhor F., em meio ao mau cheiro do ambiente e de seus dejetos, mal nos enxergava, exteriorizando resmungos ininteligíveis.

Abandonado por ‘ninguém sabe e ninguém viu’, recebia comida de alguns ‘vizinhos’.

Após breve tentativa de conversa e impossibilidade de entendimento, fora acionada a secretaria de assistência social e secretaria de saúde do município, para as ‘medidas urgentes’.

Aí, eis um dos fatores que estão a assolar a maior parte dos mais de cinco mil municípios desse nosso país: onde inserir o senhor F.?

Vivendo-se no ideológico ‘país do futuro’, encontram-se hoje legiões de idosos que não possuem qualquer estrutura governamental para seu amparo e, o que é pior, sem familiares a quem contar ou mesmo que queiram ou saibam como proceder!

Desse modo, em um primeiro momento, o senhor F. fora inserido no hospital local, haja vista a notória necessidade de avaliação médica e condutas urgentes ante sua subnutrição.

Ao município, que não possuía estabelecimento de acolhimento de idosos, fora estabelecido que até que disponibilizassem ambiente adequado, encetassem suporte psicológico e assistencial ao idoso.

Passadas as primeiras semanas, o município estabeleceu convênio com o município vizinho, para inserção do senhor F. em seu estabelecimento de acolhimento, até que construíssem o seu.

E assim, após buscas e investigações, não havendo êxito em encontrar familiares do senhor F., tampouco pessoas que se dispusessem a amparar o idoso, finalizou-se o procedimento instaurado, com a colocação permanente do ancião naquele abrigo.

Passados alguns meses e diversos casos afetos a diversas áreas de atuação (meio ambiente, crime, infância e juventude, patrimônio público, etc), eis que surge, em minha sala, a mesma agente de saúde que revelara a situação do senhor F., sorridente, querendo ‘contar a novidade’.

Com diversas fotografias nas mãos, ela mostra como está o senhor F.: asseado, cabelo e barba cortados, sorriso no rosto, servindo-se da refeição e até esboçando uma dancinha, em uma festa de confraternização!

“Agora a gente entende o que ele fala! Ele está super feliz e não quer sair de lá por nada” – comenta a agente de saúde.

Ele é outra pessoa” – completa.

Após concordar com suas palavras, passo alguns instantes os olhos sobre cada uma daquelas fotos, expressões alegres espalhadas sobre a mesa....

E chego a conclusão de que, em verdade, não se trata de outra pessoa: esse sim é o verdadeiro senhor F.!

...a pessoa que tinha visto há alguns meses, jogada pela indiferença humana em um cubículo daquele cortiço úmido e imundo, aquela sim, era outra pessoa!

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